segunda-feira, 16 de abril de 2007

Abram alas pró Noddy


Sábado de manhã (às oito horas e trinta minutos, para mais específica ser) foi dia de babysitting ao sobrinho de ano e meio.

Às oito horas e quarenta e cinco minutos entrei em pânico quando percebi que tinha de lhe dar a papa sem a cadeira própria onde sentar (e amarrar) o rebento.

Coloco o Noddy no leitor de dvd, ao que se seguem horas de puro hipnotismo e contemplação.

Apercebo-me de que o Noddy é um brinquedo com uma moral curiosa e, por vezes, perversa.

Não é apenas o facto de ter veiculado, por diversas vezes e a propósito de um espectáculo de circo que os brinquedos estavam a organizar, que «os melhores artistas são os nossos amigos». Quando me propus a intervir, o tio explicou-lhe que esta cultura de favoritismo e amiguismo estava a dar cabo do panorama cultural português.


Acho que percebeu.


Chocou-me mais, porém, a cena em que os brinquedos se encontraram para discutir quem iria à frente no cortejo anual da cidade dos brinquedos, sem conseguirem chegar a acordo:


1.º O Noddy sugere que seja o Orelhas a escolher, discricionaria a arbitrariamente, visto que eles não conseguem.


2.º Porquê o Orelhas? Porque é o único que não é um brinquedo (é um gnomo).


3.º Talvez 2.º faça sentido na terra dos brinquedos, mas acho que nem neste lugar sinistro fará sentido o que se passou a seguir - como todos os brinquedos queriam ser os primeiros, e tendo o Noddy sido o único a graciosamente alvitrar que «não me importa ser o terceiro, quarto ou o último, só quero é participar» (nesta parte desatei ao palavrão, mas acho que o puto não percebeu), o Orelhas escolheu precisamente o Noddy.


4.º Porquê o Noddy? «Porque foi o único que não quis ir em primeiro.»


Que anãozinho irritante.


Expliquei ao João, pacientemente, que a opção do Orelhas assenta numa concepção deontológica da moral, constitutivista, que, embora cheia de valor filosófico, pode tornar pior a vida das pessoas e insurgir-se contra teorias mais liberais como as que são defendidas lá em casa. Que, de um ponto de vista consequencialista e utilitarista (no bom sentido, claro), o Orelhas teria feito uma opção claramente ineficiente, ao atribuir um benefício a quem não o valorizava, e que, como tal, dele não retirou qualquer utilidade, privando da mesma quem efectivamente valorizava ser o primeiro (todos os outros brinquedos). Por outras palavras, o Noddy ficou na mesma e pelo menos um brinquedo ficou pior do que poderia estar. O Orelhas não procedeu a um movimento de Pareto. Além de se me escapar a moral deontológica da coisa. O Orelhas bem nos podia ensinar algo para além da sua moral paranoica de que é absolutamente errado e insensato querer ser o primeiro a liderar um cortejo de brinquedos.


Acho que ele percebeu.


3 comentários:

ICS disse...

EHEH
QUE gargalhada... este post tá MUITO bom

Dá-lhe mais uns sábados e vou adorar conhecer o teu sobrinho pessoalmente

Luís Serpa disse...

Cá por mim, acho que se perdeu uma grande advogada na área dos direitos humanos. A ideia de que a expressão "direitos humanos" engloba "deveres" - sejam eles de que ordem fôr (hierarquia, ambição, organização - tantas palavras feias juntas, não é?) merece ser mais e melhor debatida em algumas instâncias apropriadas.

Já pelo sobrinho, temo um pouco...

Mariana Duarte Silva disse...

Eu também temo. Este Noddy não me parece ser de confiança ;)

Concordo que essas e muitas outras palavras feias fazem falta na retórica dos direitos humanos (acrescentaria "custos" e "eficiência").